Cinderella
Teorema de Newton para quadriláteros
António Rosa, 2007-06-19 14:55 [#917]
Ficheiro anexo 'Trabalho.html':
 
O teorema de Newton sobre quadriláteros circunscritíveis


1. Um problema para o módulo inicial do 10º ano de escolaridade
No módulo inicial do programa de Matemática A para o 10º ano, são propostos vários problemas destinados a consolidar e fazer uso de conhecimentos anteriormente adquiridos, por forma a detectar falhas em questões básicas e a estabelecer a ligação entre o 3º ciclo do Ensino Básico e o Ensino Secundário. Apresentamos aqui uma alternativa aos problemas de carácter geométrico indicados no programa em vigor na forma de um estudo sobre quadriláteros convexos (único caso que consideraremos) nos quais pode ser inscrita uma circunferência. Generalizamos e ampliamos conhecimentos de Geometria adquiridos no 3º ciclo do Ensino Básico, tendo a preocupação de exigir o mínimo possível de pré-requisitos e, ao mesmo tempo, apresentar resultados interessantes e não triviais, na linha do que nos parece ser a melhor maneira de concretizar as recomendações do programa. Pensamos que todos os resultados e exercícios aqui apresentados estão (ou deveriam estar...) ao alcance de um aluno de Matemática A do 10º ano, excepto o teorema 2, cuja demonstração pode, no entanto, constituir um desafio interessante para os melhores alunos.


2. Quadriláteros circunscritíveis
No 9º ano de escolaridade, os alunos verificaram que as bissectrizes dos três ângulos internos de qualquer triângulo são concorrentes num ponto, dito incentro do triângulo e viram que esse ponto é o centro da circunferência inscrita no triângulo. Nalguns casos,  terão abordado estes assuntos na disciplina de Educação Visual, a propósito do estudo das concordâncias.

Figura 1

Passando aos quadriláteros, é óbvio que há alguns nos quais pode ser inscrita uma circunferência, como o quadrado e outros nos quais tal é impossível, como o rectângulo abaixo.

Figura 2

Veremos adiante algumas condições necessárias e suficientes para que uma circunferência possa ser inscrita num quadrilátero dado; por agora, limitamo-nos a considerar o caso do losango, na forma de um exercício.



   Sugerimos que se estude o caso particular dos quadrados, vendo que, para estes polígonos, o centro da circunferência inscrita coincide com o da circunferência circunscrita. 

3. Algumas condições para que um quadrilátero seja circunscritível
Se pensarmos que a bissectriz de um ângulo pode ser caracterizada como o lugar geométrico dos pontos do plano equidistantes  dos lados desse ângulo, resulta imediatamente que quando as quatro bissectrizes dos ângulos internos de um quadrilátero  têm um ponto em comum, o quadrilátero é circunscritível; um momento de reflexão mostra que basta exigir que três das bissectrizes tenham um ponto em comum, já que a quarta terá obrigatoriamente de incidir com esse ponto. O applet abaixo ilustra a situação; as rectas a verde contêm as bissectrizes dos ângulos internos de vértices em A e B e as rectas a vermelho desempenham papel análogo para os ângulos de vértices em C e D.


Desloque o ponto D com o rato e verifique que, enquanto ABCD for um quadrilátero convexo, a incidência de uma das bissectrizes a vermelho com o ponto X, implica a incidência da outra com o mesmo ponto, a coincidência dos pontos X e Y e a existência da circunferência inscrita.

Exercício 1
Justifique as afirmações feitas no início da secção.
Sugestão: para mostrar que a concorrência de três das bissectrizes implica a concorrência da quarta, recorra à caracterização da bissectriz como lugar geométrico e adapte a prova de que as bissectrizes dos ângulos internos de um triângulo são concorrentes.

Exercício 2
Explique porque motivo a seguinte figura não contradiz a caracterização dos quadriláteros circunscritíveis apresentada.


As caracterizações dos quadriláteros circunscritíveis que apresentámos são muito simples e fazem apenas intervir os ângulos dos polígonos; no que se segue, vamos precisar de um resultado mais sofisticado, uma condição sobre os lados.
Tem-se o seguinte resultado:

Teorema 1
Dado um quadrilátero convexo ABCD, ele é circunscritível se e só se

AB + CD = AD + BC.

Demonstração
Comecemos por supor que o quadrilátero ABCD  é circunscritível e sejam K, L, M e N os pontos em que os lados AB, BC, CD  e DA  são tangentes à circunferência (ver figura 3).

Figura 3

Tem-se que  AK = AN, BK = BL, CL = CM, DM = DN (porque os segmentos das tangentes tiradas a uma circunferência por um ponto exterior têm o mesmo comprimento) e o resultado pretendido, 

AB + CD = AD + BC

segue-se por adição ordenada das quatro primeiras igualdades.

Reciprocamente, suponhamos que AB + CD = AD + BC, com vista a provar que o quadrilátero ABCD  é circunscritível.  Tracemos uma circunferência tangente a ABBC CD e suponhamos que esta não era tangente a AD. Seja então o ponto de intersecção dessa tangente com CD.  Consideremos o caso C - E - D (ver figura 4 - o outro caso é análogo).


Figura 4

    A circunferência por nós traçada está inscrita no quadrilátero ABCE, pelo que, pela parte já provada do teorema, vem que  AB + CE = AE + BC. Por hipótese,  AB + CD = AD + BC, donde

AB + CE + ED = AD + BC e portanto ED + AE = AD,

o que contradiz o conhecido resultado de que um lado de um triângulo é menor que a soma dos outros dois. Logo, a circunferência é também tangente a AD  e segue-se o resultado.

Exercício 3
Justifique as afirmações feitas na secção 2 sobre losangos, quadrados e rectângulos recorrendo ao teorema 1.

Exercício 4
Construa trapézios circunscritíveis e trapézios não circunscritíveis.


4. O teorema de Newton
No livro I dos Principia, Newton apresentou várias proposições sobre cónicas,  demonstradas por via sintética. Entre elas figura o resultado que vamos provar a seguir.

Teorema 2 (Newton)
A linha recta definida pelos pontos médios das diagonais de um quadrilátero circunscritível incide com o centro da circunferência.

O resultado pode ser visualizado no seguinte applet .
A circunferência da figura está inscrita no quadrilátero [QFPG]. Então, os pontos médios das diagonais e o centro da circunferência são colineares.
Comprove esta propriedade, deslocando os pontos  F  e  G  com o rato.

Para a demonstração, necessitamos de um lema que fornece uma caracterização de um lugar geométrico menos vulgar.

Lema 1
Consideremos dois triângulos, com um vértice comum F e  bases não paralelas, de comprimentos a e b. O lugar geométrico descrito pelo vértice de modo que a soma das áreas dos dois triângulos seja igual a uma constante k é uma linha recta.

Antes de passarmos à justificação, é conveniente visualizar a situação por meio de um applet.
A soma das áreas dos dois triângulos permanece igual a 16 enquanto o vértice  F  percorre a recta a azul, se descontarmos, obviamente, o facto de o computador trabalhar com uma versão discretizada do plano...

Demonstração do lema 1
Sejam x  e y as distâncias do vértice F às rectas suportes das duas bases; se considerarmos o sistema de coordenadas definido por x e y, o lugar geométrico pretendido pode ser caracterizado por 0.5ax + 0.5by = k (repare-se que as parcelas são as áreas dos triângulos), ou  ainda por ax + by = 2k, que é a equação de uma recta.

Após estes preliminares, podemos passar à prova do teorema de Newton.

Demonstração do teorema 2 (Newton)
No que se segue, representaremos por |XYZ| a área do triângulo de vértices X, Y, e Z.
Excluindo desde já casos triviais, como haver coincidência de alguns dos pontos referidos no enunciado, ou o quadrilátero ter lados paralelos, seja então ABCD o quadrilátero circunscrito à circunferência de centro O e M e N  os pontos médios das diagonais AC  e BD, respectivamente (ver figura 5).
Figura 5
É imediato que
|OAB| + |OCD| + |OAD| + |OBC| = |ABCD|  (1)

Por outro lado, pelo teorema 1,
AB + CD = AD + BC (2);

multiplicando por r/2 (onde r é o raio da circunferência inscrita) ambos os membros de (2), vem que

|OAB| + |OCD| = |OAD| + |OBC| (3).
Utilizando (3) em (1), vem que
|OAB| + |OCD| = 0.5|ABCD| (4)

Por outro lado,
|NAB| = 0.5|ABD| (5),

já que N divide ao meio o segmento AB. Analogamente,

|NCD| = 0.5|BCD| (6).

Somando membro a membro (5) e (6), vem

|NAB| + |NCD| = 0.5(|ABD| + |BCD|) = 0.5|ABCD|  (7).

Da mesma forma se provaria que

|MAB| + |MCD| = 0.5|ABCD|  (8).
 
As igualdades (4), (7) e (8) mostram que os pontos O, N e M estão no lugar geométrico dos pontos X tais que |XAB| + |XCD| = 0.5|ABCD|, lugar geométrico esse que se sabe ser uma recta, pelo lema 1.  Está assim concluída a prova do teorema de Newton.

Obervações finais:
1) A linha definida pelos pontos
O, N e M  chama-se linha de Newton do quadrilátero.
2) Na já referida série de proposições sobre cónicas dos Principia, Newton usou o teorema que apresentámos para a determinação de um lugar geométrico extremamente interessante; mostrou que o lugar geométrico dos centros de todas as elipses que podem ser inscritas num dado quadrilátero é uma linha recta, mais precisamente é a linha recta definida pelos pontos médios das diagonais do quadrilátero.  O leitor interessado pode ver a demonstração em [6].


7. Referências bibliográficas
[1] Amorim, D. P. (1943)  - Compêndio de Geometria, Coimbra, Coimbra Editora (reeditado pela SPM, como volume 1 da Biblioteca Básica de Textos Didácticos de Matemática).
[2]
Andrescu, T. e Gelca, R. (2000) - Mathematical Olympiad Challenges, Boston, Birkhauser.
[3] Andrescu, T. e Bogdan, E. (2004) - Mathematical Olympiad Treasures, Boston, Birkhauser.
[4] Boyer, C. B. e Merzbach, U. C. (1989) - A History of Mathematics, Singapura, John Wiley & Sons.
[5] Coxeter, H. S. M. e Greitzer, S. L. (1967) - Geometry Revisited (10th printing), The Mathematical Association of America.
[6] Dorrie, H. (1965) - 100 Great Problems of Elementary Mathematics, New York, Dover Publications, Inc.
[7] Eves, H. (1995) - College Geometry, Boston, Jones and Bartlett Publishers.

Consultei ainda os programas das disciplinas de Matemática (9º ano), Matemática A (10º ano), Matemática B (10º ano) e Educação Visual (9º ano), disponíveis no site  da  Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular (www.dgidc.min-edu.pt/programs/programas.asp).