O teorema de Newton sobre quadriláteros
circunscritíveis
1. Um problema para o módulo inicial
do 10º ano de escolaridade
No módulo inicial do programa de Matemática A para o 10º ano, são
propostos vários problemas destinados a consolidar e fazer uso de
conhecimentos anteriormente adquiridos, por forma a detectar falhas em
questões básicas e a estabelecer a ligação entre o 3º ciclo do Ensino
Básico e o Ensino Secundário. Apresentamos aqui uma alternativa aos
problemas de carácter geométrico indicados no programa em vigor na
forma de um estudo sobre quadriláteros convexos
(único caso que consideraremos) nos quais pode ser inscrita uma
circunferência. Generalizamos e ampliamos conhecimentos de Geometria
adquiridos no 3º ciclo do Ensino Básico, tendo a preocupação de exigir
o mínimo possível de pré-requisitos e, ao mesmo tempo, apresentar
resultados interessantes e não triviais, na linha do que nos parece ser
a melhor maneira de concretizar as recomendações do programa. Pensamos
que todos os resultados e exercícios aqui apresentados estão (ou
deveriam estar...) ao alcance de um aluno de Matemática A do 10º ano,
excepto o teorema 2, cuja demonstração pode, no entanto, constituir um
desafio interessante para os melhores alunos.
2. Quadriláteros
circunscritíveis
No 9º ano de escolaridade, os alunos verificaram que as bissectrizes
dos três ângulos internos de qualquer triângulo são concorrentes num
ponto, dito incentro do
triângulo e viram que esse ponto é o centro da circunferência
inscrita no triângulo. Nalguns casos, terão abordado estes
assuntos na disciplina de Educação Visual, a propósito do estudo das
concordâncias.
Figura 1
Passando aos quadriláteros, é óbvio que há alguns nos quais
pode ser inscrita uma circunferência, como o quadrado e outros nos
quais tal é impossível, como o rectângulo abaixo.
Figura 2
Veremos adiante algumas condições necessárias e suficientes para que
uma circunferência possa ser inscrita num quadrilátero dado; por agora,
limitamo-nos a considerar o caso do losango, na forma de um
exercício.
Sugerimos que se estude o
caso particular dos quadrados, vendo que, para estes polígonos, o
centro da circunferência inscrita coincide com o da circunferência
circunscrita.
3.
Algumas condições para que um quadrilátero seja
circunscritível
Se pensarmos que a bissectriz de um ângulo pode ser caracterizada como
o lugar geométrico dos pontos do plano equidistantes dos lados
desse ângulo, resulta imediatamente que quando as quatro bissectrizes
dos ângulos internos de um quadrilátero têm um ponto em comum, o
quadrilátero é circunscritível; um momento de reflexão mostra que basta
exigir que três das
bissectrizes tenham um ponto em comum, já que a quarta terá
obrigatoriamente de incidir com esse ponto. O applet abaixo ilustra a situação; as
rectas a verde contêm as bissectrizes dos ângulos internos de vértices
em A e B e as rectas a vermelho desempenham
papel análogo para os ângulos de vértices em C e D.
Desloque o ponto D com o rato e verifique que,
enquanto ABCD for um quadrilátero convexo, a incidência
de uma das bissectrizes a vermelho com o ponto X, implica a incidência da outra com
o mesmo ponto, a coincidência dos pontos X e Y e a existência da circunferência
inscrita.
Exercício 1
Justifique as afirmações feitas no início da secção.
Sugestão: para mostrar que a
concorrência de três das bissectrizes implica a concorrência da quarta,
recorra à caracterização da bissectriz como lugar geométrico e adapte a
prova de que as bissectrizes dos ângulos internos de um triângulo são
concorrentes.
Exercício 2
Explique porque motivo a seguinte figura não contradiz a
caracterização dos quadriláteros circunscritíveis apresentada.
As caracterizações dos quadriláteros circunscritíveis que apresentámos
são muito simples e fazem apenas intervir os
ângulos dos polígonos; no que se
segue, vamos precisar de um resultado mais sofisticado, uma condição
sobre os
lados.
Tem-se o seguinte resultado:
Teorema 1
Dado um quadrilátero convexo
ABCD, ele é circunscritível
se e só se
AB +
CD = AD + BC.
Demonstração
Comecemos por supor que o quadrilátero
ABCD é circunscritível e sejam
K,
L,
M e
N os pontos em que os lados
AB,
BC,
CD e
DA são tangentes à
circunferência (ver figura 3).
Figura 3
Tem-se que AK = AN, BK = BL, CL = CM, DM = DN (porque os segmentos das
tangentes tiradas a uma circunferência por um ponto exterior têm o
mesmo comprimento) e o resultado pretendido,
AB +
CD = AD + BC,
segue-se por adição ordenada das quatro
primeiras igualdades.
Reciprocamente, suponhamos que
AB + CD = AD + BC, com vista a
provar
que o
quadrilátero
ABCD é
circunscritível. Tracemos uma circunferência tangente
a
AB,
BC e
CD e suponhamos que esta não era
tangente a
AD. Seja
então
E o ponto de
intersecção dessa tangente com
CD. Consideremos o
caso
C - E - D (ver
figura 4 - o outro caso é análogo).
Figura 4
A circunferência por nós traçada está inscrita no
quadrilátero
ABCE, pelo
que, pela parte já provada do teorema, vem que
AB + CE = AE + BC. Por hipótese,
AB + CD = AD + BC,
donde
AB +
CE + ED = AD + BC e portanto ED + AE = AD,
o que contradiz o conhecido resultado de que um lado de um triângulo é
menor que a soma dos outros dois. Logo, a circunferência é também
tangente a
AD e
segue-se o resultado.
Exercício 3
Justifique as afirmações feitas na secção 2 sobre losangos, quadrados
e rectângulos recorrendo ao teorema 1.
Exercício 4
Construa trapézios circunscritíveis e trapézios não
circunscritíveis.
4. O teorema de Newton
No livro I dos
Principia,
Newton apresentou várias proposições sobre cónicas, demonstradas
por via sintética. Entre elas figura o resultado que vamos provar a
seguir.
Teorema 2 (Newton)
A linha recta definida pelos pontos médios das diagonais de um
quadrilátero circunscritível incide com o centro da
circunferência.
O resultado pode ser visualizado no seguinte
applet .
A circunferência da figura
está inscrita no quadrilátero [QFPG]. Então, os pontos médios das
diagonais e o centro da circunferência são colineares.
Comprove esta propriedade,
deslocando os pontos F
e G com o
rato.
Para a demonstração, necessitamos de um lema que fornece uma
caracterização de um lugar geométrico menos vulgar.
Lema 1
Consideremos dois triângulos, com um vértice comum
F e bases não paralelas, de
comprimentos
a e
b. O lugar geométrico descrito pelo
vértice de modo que a soma das áreas dos dois triângulos seja igual a
uma constante
k é uma linha
recta.
Antes de passarmos à justificação, é conveniente visualizar a situação
por meio de um
applet.
A soma das áreas dos dois
triângulos permanece igual a 16 enquanto o vértice F
percorre a recta a azul, se descontarmos,
obviamente, o facto de o computador trabalhar com uma versão
discretizada do plano...
Demonstração do lema 1
Sejam x e y as distâncias do vértice F às rectas suportes das duas bases;
se considerarmos o sistema de coordenadas definido por x e y, o lugar geométrico pretendido
pode ser caracterizado por 0.5ax
+ 0.5by = k (repare-se que as parcelas
são as áreas dos triângulos), ou ainda por ax + by = 2k, que é a equação de uma
recta.
Após estes preliminares, podemos passar à prova do teorema de
Newton.
Demonstração do teorema 2
(Newton)
No que se segue, representaremos por |XYZ| a área do triângulo de vértices
X, Y, e Z.
Excluindo desde já casos triviais, como haver coincidência de
alguns dos pontos referidos no enunciado, ou o quadrilátero ter lados
paralelos, seja então ABCD o
quadrilátero circunscrito à circunferência de centro O e M e N os pontos médios das
diagonais AC e BD, respectivamente (ver figura
5).
Figura 5
É imediato que
|
OAB| + |
OCD| + |
OAD| + |
OBC| = |
ABCD| (1)
Por outro lado, pelo teorema 1,
AB +
CD = AD + BC (2);
multiplicando por
r/2 (onde
r é o raio da circunferência
inscrita) ambos os membros de (2), vem que
|
OAB| + |
OCD| = |
OAD| + |
OBC| (3).
Utilizando (3) em (1), vem que
|
OAB| + |
OCD| = 0.5|
ABCD| (4)
Por outro lado,
|
NAB| = 0.5|
ABD| (5),
já que
N divide ao meio o segmento
AB. Analogamente,
|
NCD| = 0.5|
BCD| (6).
Somando membro a membro (5) e (6),
vem
|
NAB| + |
NCD| = 0.5
(|
ABD| + |
BCD|
) =
0.5|ABCD|
(7).
Da mesma forma se provaria que
|MAB| + |MCD|
= 0.5|ABCD|
(8).
As igualdades (4), (7) e (8) mostram
que os pontos O, N e M estão no lugar geométrico dos
pontos X tais que |XAB| + |XCD|
= 0.5|ABCD|, lugar geométrico esse que se
sabe ser uma recta, pelo lema 1. Está assim concluída a prova do
teorema de Newton.
Obervações finais:
1) A linha definida pelos pontos O, N e M chama-se linha de Newton do
quadrilátero.
2) Na já referida série de proposições sobre cónicas dos Principia, Newton usou o teorema que
apresentámos para a determinação de um lugar geométrico extremamente
interessante; mostrou que o lugar
geométrico dos centros de todas as elipses que podem ser inscritas num
dado quadrilátero é uma linha recta, mais precisamente é a linha recta
definida pelos pontos médios das diagonais do quadrilátero.
O leitor interessado pode ver a demonstração em [6].
7.
Referências bibliográficas
[1] |
Amorim, D. P. (1943)
- Compêndio de
Geometria, Coimbra, Coimbra Editora (reeditado pela SPM, como
volume 1 da Biblioteca Básica de Textos Didácticos de Matemática). |
[2]
|
Andrescu, T. e Gelca, R.
(2000) - Mathematical Olympiad
Challenges, Boston, Birkhauser. |
[3] |
Andrescu, T. e Bogdan,
E. (2004) - Mathematical Olympiad
Treasures, Boston, Birkhauser. |
[4] |
Boyer, C. B. e Merzbach,
U. C. (1989) - A History of
Mathematics, Singapura, John Wiley & Sons. |
[5] |
Coxeter, H. S. M. e
Greitzer, S. L. (1967) - Geometry
Revisited (10th printing), The Mathematical Association of
America. |
[6] |
Dorrie, H. (1965) -
100 Great Problems of Elementary
Mathematics, New York, Dover Publications, Inc. |
[7] |
Eves, H. (1995) - College Geometry, Boston, Jones and
Bartlett Publishers. |
Consultei ainda os programas das disciplinas de Matemática (9º ano),
Matemática A (10º ano), Matemática B (10º ano) e Educação Visual (9º
ano), disponíveis no
site
da Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento
Curricular (
www.dgidc.min-edu.pt/programs/programas.asp).